Dois dos blocos de carnaval de rua mais tradicionais do Rio tiveram destinos completamente diferentes. Em setembro de 2010, o prefeito Eduardo Paes inaugurou a nova sede do Cacique de Ramos. A prefeitura investiu R$ 1 milhão para reformar a quadra, que passou a contar com um centro cultural e uma quadra de esportes. Em maio deste ano, a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj) concedeu ao Cacique a medalha Tiradentes — a mais alta condecoração do legislativo estadual do Rio — em homenagem aos seus 50 anos. Também em 2011 a escola de samba Estação Primeira da Mangueira escolheu o bloco como tema do seu carnaval de 2012. A pergunta que fica é: e o Bafo da Onça? Não teve todo esse destaque mas continua na ativa e está ensaiando a sua volta.

Por muitos anos, desde a década de 60, o Bafo e o Cacique disputaram o direito de fazer o melhor carnaval de rua da capital fluminense. Segundo relatos de um jornalista especializado em carnaval (que não quis se identificar), nesta luta geralmente o primeiro ganhava, arregimentava mais pessoas e tinha os sambas mais empolgantes.

O Bafo foi fundado no Catumbi, bairro no centro do Rio, depois que o bloco de carnaval Gonçalves, que desfilava na rua de mesmo nome, também na região, parou de desfilar. Ele foi criado em 12 de dezembro de 1956 em um botequim do bairro. Um de seus fundadores era o ex-policial e o ex-carpinteiro Sebastião Maria (mais conhecido como Tião Maria), que durante a folia saia vestido de onça pintada em uma espécie de “bloco do eu sozinho”.

A matéria “Bafo da Onça comemora 30 anos” da falecida jornalista Mara Caballero publicada em 8 de janeiro 1987 no Jornal do Brasil, diz que Tião era uma espécie de líder da comunidade, promovendo as festas para as crianças no Catumbi. Em um barzinho local, costumava beber leite-de-onça (um drink que mistura rum com leite condensado, que, segundo a jornalista, causa ressacas memoráveis), que foi a inspiração para o nome do bloco de carnaval. Com suas habilidades de marceneiro, foi ele quem criou o primeiro carro abre-alas do grupo.

Como conta Roberto Saldanha (mais conhecido como Capilé), presidente do Bafo há quase 40 anos, com o fim do Gonçalves surgiram dois blocos: o Bafo e o Vai Quem Quer. “Saio no Bafo da Onça desde sua fundação. Eu saia no Gonçalves, era o maior bloco de sujo da cidade (NOTA: bloco de sujo eram manifestações carnavalescas com fantasias e instrumentos improvisados onde os foliões tocavam marchinhas e sambas-enredo). Quando acabou o Gonçalves, veio o Bafo da Onça e depois o Vai Quem Quer”.

Segundo ele, foi com o Bafo que surgiram os blocos com fantasias uniformizadas. “Antes o povo saia com qualquer roupa, de qualquer jeito, vestido de mulher, aqueles negócios… Aí o Bafo não. O Bafo colocou aquele short de onça (nos homens) e as meninas iam de sainha (de onça). O lado esquerdo era mulher e o lado direito era homem. Eram duas filas que saiam juntas. Não misturava. As crianças saiam (juntas). Minha mãe saia com a criançada toda, meu irmão, filha da vizinha. Era uma ala quase, porque a família toda saia”. Sete anos mais tarde, o Cacique de Ramos surgiria com fantasias inspiradas nos índios (daí o nome “Cacique”).

Tião colocou as mais belas mulatas do bairro na frente do bloco, o que foi logo seguido por outras agremiações. O radialista e empresário Oswaldo Sargentelli recrutou algumas dançarinas do Bafo e inventou as “Mulatas do Sargentelli”. Em 1970 elas eram parte da atração de sua casa de espetáculos Sambão, criada em Copacabana um ano antes. O “mulatólogo” e suas dançarinas participavam dos ensaios e desfiles do bloco. Uma das mais famosas foi a espetacular Adele de Fátima, que foi coroada rainha da bateria da Mocidade Independente de Padre Miguel e participou de algumas chanchadas no cinema (como “Histórias que Nossas Babás não Contavam”) e programas de televisão. Outra foi Solange Couto, que mais tarde viria a estrelar diversas telenovelas da Globo (ficou famosa com o bordão “Não é brinquedo não?” na novela O Clone).

Como escreveu Mara Caballero, outra inovação de Tião foi um trejeito para a frente nos quadris das mulatas na hora de dançar, o que era uma ousadia tremenda no inocente começo dos anos 60 (mas que depois se popularizou em programas de televisão como o do Chacrinha). Ele também obrigava os compositores que vencessem as competições de sambam que seriam cantados pelo bloco a dividirem com a agremiação os direitos autorais ganhos com a gravação do disco.

O mais famoso compositor do Bafo da Onça foi Oswaldo Nunes, autor do samba de maior sucesso do bloco, o Oba, criado em 1962: Olha a rapaziada (oba) / Vem dizendo no pé (oba) / As cabrochas gingando (oba) / Como tem mulher (oba) / Todo mundo presente (oba) / Olha a empolgação (oba) / Esse é o Bafo da Onça / Que eu trago guardado no meu coração / Eu vou, eu vou, eu vou / Essa onda que eu vou / Olha a onda Iaiá / É o Bafo da Onça que acabou de chegar / Essa onda que eu vou / Olha a onda Iaiá / É o Bafo da Onça que acabou de chegar. Outro famoso foi Dominguinhos do Estácio, que começou a carreira no Bafo como ritmista e só depois partiu para as composições próprias. Passou por várias escolas de samba (Estácio, Viradouro, Inocentes de Belford Roxo) e hoje é intérprete da Imperatriz Leopoldinense. O bloco chegou a lançar no começo dos anos 60 um LP com seus sambas-empolgação pelo selo Mocambo, em parceria com a fábrica de discos Rozenblit.

Em 1961, surgiu o Cacique de Ramos. Segundo o mestre em História Social e pesquisador da cultura popular carioca, Luiz Antonio Simas, o próprio presidente do bloco, Bira, teria admitido que o Cacique foi criado para competir com o Bafo da Onça no carnaval de rua. Como Simas certa vez escreveu: “Bafo e Cacique cansaram de transformar a avenida Rio Branco, nos dias de Momo, em um verdadeiro Maracanã em domingo de Fla X Flu”. Capilé diz que o Bafo chegava a mobilizar até 30 mil foliões. “Quem fazia aquele desfile de sábado, era o Bafo e o Cacique. Nós é que fazíamos a abertura do carnaval junto com o Rei Momo. Rapaz, era muita gente. Vê o Bola Preta agora? Era o Bafo da Onça”, exagera.

Ele lembra de brigas homéricas entre os dois grupos no fim dos anos 60 e início dos 70, causadas algumas vezes, segundo ele, pelo desrespeito do Cacique à ordem do desfile estabelecida pela prefeitura. “Foi o primeiro ano que desfilamos pela av. Presidente Vargas. Fui em uma reunião na Riotur e ficou acertado que o Bafo passava na frente do Cacique. Aí quando cheguei no balanço (com um jipe carregando o abre-alas), metade do Cacique já tava dentro do desfile. Mas era garoto novo, era brigão pra caralho, continuei, cortei eles no meio e botei (o abre-alas) lá na frente. Mermão… saiu uma porrada…”. Outra vez, quando o desfile já era na Marquês de Sapucaí, o Cacique ia de novo passando na frente do Bafo. Os dois caíram no braço de novo. “Só vi os Caciques subirem pela grade cemitério (do Catumbi). Mas era uma briga saudável”, conta rindo.

Mudanças estruturais

Em 1971, ocorreu a primeira grande mudança urbanística no Catumbi: a abertura do túnel Santa Barbara e a construção do elevado Paulo de Frontin, que dividiu o bairro do Catumbi em dois, demoliu diversas casas centenárias (43 para ser exato, segundo a Wikipedia), desfigurou a região e acabou com a área de ensaio do bloco. Como diz o historiador Hiram Araújo: “O Bafo não tem mais a localidade que tinha na comunidade. O túnel cortou a comunidade”.

A segunda mudança foi em 1984: a construção do Sambódromo. A obra desalojou diversas famílias do bairro e aumentou ainda mais a descaracterização da comunidade. Ela também acabou com a quadra do bafo e de outros blocos que ficavam no local e no entorno. “Foi a maior idiotice (a construção do Sambódromo). Eles acabaram com o Catumbi”, afirma Capilé, categórico. Como forma de compensação, o Bafo ganhou o direito de ser a primeira agremiação a desfilar pela Marquês de Sapucaí.

As escolas de samba pressionam

Hiram Araújo diz que oito anos depois, por pressão das escolas de samba do grupo especial, blocos como o Bafo e o Cacique foram proibidos de desfilar na avenida do samba. “Quando começou o Sambódromo, os blocos carnavalescos desfilavam na frente das escolas de samba no sábado. Não eram uma força muito grande, mas eram blocos que o poder público tinha que respeitar. As escolas não tiraram de imediato os blocos do desfile do sambódromo porque eles tinham ainda poder. As próprias escolas de samba forçaram essa posição. Não queriam competição e nem havia público para (os blocos), entendeu? A grande atração era a escola de samba”.

Os blocos então voltaram a desfilar pela avenida Rio Branco, onde permanecem até hoje, só que mais esvaziados. Como aconteceu com os ranchos carnavalescos, desde a década de 60 eles foram perdendo espaço para as escolas de samba, que cada vez mais recebia apoio do poder público e espaço na mídia. “O poder público em vez de fortalecer, procurou dizimar. Priorizou só as escolas de sambas e deixou os blocos de lado. Agora (os blocos) estão voltando e eu acredito que eles vão ter mais condições que as escolas de samba”, diz Capilé. Por causa da falta de apoio, as agremiações de carnaval de rua, que somavam mais de 300 na década de 60, caíram para pouco mais de 20 no fim dos anos 90.

Isso ocorreu em parte por causa do apoio da prefeitura às escolas de samba. Com infraestrutura e subvenção pública, estas agremiações haviam formado em 1934 a AESCRJ (Associação das Escolas de Samba do Rio de Janeiro). Com o Sambódromo, em 1984, representantes da Acadêmicos do Salgueiro, Beija-Flor de Nilópolis, Caprichosos de Pilares, Estação Primeira de Mangueira, Imperatriz Leopoldinense, Império Serrano, Mocidade Independente de Padre Miguel, Portela, União da Ilha do Governador e Unidos de Vila Isabel formaram a Liesa (Liga Independente das Escolas de Samba). Eram as agremiações com maior destaque e maior alcance midiático.

Como explica Hiram Araújo, após perderem suas dez maiores escolas, a AESCRJ negociou com a prefeitura maior subvenção para o carnaval de seus 34 filiados restantes, o que foi concedido. Eles usaram isso como forma de atração dos blocos que desfilavam no subúrbio, como Acadêmicos do Dendê, Flor da Mina do Andaraí, Arame Ricardo, dentre vários outros, para aumentar suas fileiras. Estes grupos deixaram de ser blocos e passaram a ser escolas de samba que desfilam na estrada Intendente Magalhães, na Vila Valqueire, zona oeste da cidade.

“Esses blocos carnavalescos carregavam de mil a duas mil pessoas. Eram grandes blocos carnavalescos e hoje são pequenas escolas que arregimentam 200 a 300 pessoas. Viraram escolas de samba sem valor. Isso contribui para acabar com aquela pujança de blocos. Foi um passo atrás. Aquilo ali virou profissão. Você, como presidente de pequena escola de samba, tinha dinheiro e o presidente da associação também ganhava dinheiro com isso. Todas saíram dos bairros de subúrbio e foram desfilar na Intendente Magalhães”, conta.

Decadência

Ele diz que o Bafo e o Cacique não quiseram entrar nessa associação pois tinham perfil diferente. Não eram blocos de enredo (que tocavam sambas-enredo) como os outros, mas blocos de empolgação (que tocavam sambas-empolgação, músicas mais rápidas, curtas e animadas). Só que decaíram também com o tempo por descaso do poder público. Um jornalista especializado em carnaval, que não quis se identificar, disse (e repetiu) que o Bafo foi mal administrado e por isso perdeu a pujança de outrora.

O que também ajudou a esvaziar a agremiação foi a briga entre Capilé e algumas alas do Bafo que queriam levar o bloco para Madureira. Ele tinha alas espalhadas por toda a cidade e até mesmo na Baixada Fluminense. As pessoas vinham de todas as partes para pular carnaval com o grupo do Catumbi. Era gente tanto de Nova Iguaçu e Duque de Caxias quanto do Leme, Copacabana, Piedade e até Ramos, reduto de seu maior rival.

Após uma confusão no Sambódromo, no último ano que os blocos desfilaram ali (o Bafo teria desfilado a noite toda e não teria deixado o Cacique entrar na Marquês de Sapucaí), Capilé perdeu seu posto de presidente, cargo que tinha desde que Tião Maria faleceu. Ficou dois anos fora (Vanderley Barbosa foi eleito em seu lugar) e quando voltou, houve a cisão entre as alas. “As alas queriam pegar o Bafo e levar para Madureira, porque tinha mais ala em Madureira do que aqui no Catumbi. Botei todo mundo para fora. Uma das alas principais que queria fazer isso era o Pagodão de Madureira que até fundou aquele bloco (de mesmo nome)”. Hiram Araújo acha que foi a decisão correta: “O Bafo foi (criado) na comunidade do Catumbi e tem que continuar a existir lá”.

Capilé aponta outro culpado que ajudou a levar o Bafo para a decadência: o tráfico de drogas, que teve sua maior ascensão nos anos 80. “Posso dizer que há uns 30 anos atrás começou a ficar brabo. Porque o pessoal vinha do morro (NOTA: a quadra do Bafo da Onça fica perto do morro do Turano) e eu tinha que ficar com eles até clarear o dia. Os caras não tinham como voltar para casa. Agora não. Tô até me sentindo bem agora, porque não tem mais tiro”. Com a instalação da UPP da região, no morro do Turano, em setembro de 2010, Capilé disse que voltaria a organizar ensaios na quadra do Bafo com mais tranqüilidade e tem esperança de reviver as glórias antigas do bloco.

Considerações

O primeiro contato que tive com o Bafo foi pelo artigo de Luiz Antonio Simas publicado em O Globo. Fiquei curioso e quis conhecer mais sobre o bloco. No carnaval fiz questão de ver o desfile, o que aconteceu por sorte (estava no Centro da cidade quando ele ia começar a entrar na avenida Rio Branco). Foi lá que vi Capilé pela primeira vez. Era um senhor que escalou o trio elétrico onde a banda estava tocando e a mulata dançando. Foi falar algo para a banda. A segunda e última vez foi na própria quadra do Bafo, na rua Doutor Agra, no Catumbi (ao lado do elevado Paulo de Frontin). Ele estava sujo de graxa (como na reportagem da Mara Caballero, na época, afastado da presidência) enquanto ajudava a arrumar um carro. Pelo que vi, a história dele e do Bafo se confundem. Não dá pra falar do Bafo sem falar do Capilé e vice-versa. “Sou a última raizinha que essa merda tem”, disse. O que provavelmente é verdade.

Vi, no entanto, na comunidade do Orkut do grupo (e dizem que o Orkut está ultrapassado) que várias pessoas estão se organizando pra ajudar o bloco a se reerguer. E sem querer pender pro lado do governador Sérgio Cabral, com a UPP do Turano, isso bem pode acontecer mais facilmente. Pelo Orkut, as pessoas estão organizando o site do Bafo e relembrando histórias antigas. São moradores do Catumbi e familiares cuja própria história está entrelaçada com o grande rival do Cacique de Ramos.

Percebi que os dois grupos têm o perfil completamente diferente. O Bafo teve história marcada pelo mito Tião Maria, pelas “Mulatas de Sargentelli” e pelo compositor Oswaldo Nunes. Tudo isso já ficou no passado. As pessoas mais famosas relacionadas ao Cacique de Ramos ainda estão por aí: Arlindo Cruz, Beth Carvalho, Zeca Pagodinho. O que muitos não sabem é que estes dois últimos também tiveram passagem pelo Bafo (participaram também de rodas de samba no Catumbi), assim como Cauby Peixoto e vários sambistas.

O Cacique tem o grupo Fundo de Quintal, que continua na ativa mas com novos rostos. Sua tamarindeira, que assume aura mitológica, como Tião Maria, ainda faz a sombra para as rodas de samba que ocorrem na quadra do grupo de Ramos. Leila Diniz desfilou no Cacique e o artista plástico Carlos Vergara fez várias fotos sensuais dos foliões vestidos de índio nos anos 70, o que ajudou a eternizar o bloco.

Além disso, foi no Cacique que, segundo André Diniz (no livro Almanaque do Samba), surgiu o pagode (que depois teria sido desvirtuado por paulistas). Podemos perceber que a história do Cacique teve menos percalços que a do Bafo. Não perdeu um centímetro de sua comunidade e ainda foi o berço de grandes compositores. Ele atrai até hoje entusiastas do samba de toda a parte da cidade, como o filho do governador Sérgio Cabral, Marco Antonio Cabral, que convenceu o prefeito Eduardo Paes a tombar a quadra da agremiação. O Bafo, com todos os problemas que sofreu, não teve tanta sorte e caiu no esquecimento. Hiram Araújo mesmo disse: “O Cacique hoje é uma marca”. Não perguntei o que é o Bafo, mas pelo que vi no Orkut, ele pode ser uma comunidade que quer voltar fazer festa com força. Como é o Rio de Janeiro hoje e seu carnaval de rua.